quinta-feira, junho 19, 2008

Quinta

Acordo muito depois da hora marcada, não sei o que se passou, ouvi o despertador e continuei a dormir, estou muito, muito atrasada, temo já não haver comida por minha causa.
Ponho-me a caminho, apanho os documentos e o carimbo no restaurante, mais a chave da carrinha, vou para Perafita.
Puxo por ela, meto a quinta. A condizer com as semanas.
Chego. Ainda há comida - o alívio.
Espero e quando chega a minha vez assusto-me. Dez caixas de 6L de leite cada? Dez caixas de 12 latas de sumo?
Carrego tudo para dentro da carrinha, incluindo as 12 garrafas de água mineral que não vamos usar para nada... Talvez diluir os sumos naturais.
Volto para os frescos. Seis caixas de mangas, três de tomate. O aspecto não é animador, mas de certeza que se aproveita muita coisa. Da manga, principalmente, porque enganadora como é, as firmes são más e as moles são as melhores.
E saborosas, que eu provei mais tarde.
Dez quilos de mostarda. Ora aí está uma coisa sempre necessária, mas a cavalo dado...
Mais tarde engendramos um plano de trocar as mostardas por farturas no arraial de S. João já montado à frente da Cadeia da Relação, mas a máxima do Banco Alimentar, "Recebestes de graça, dai de graça", talvez não dê para esticar tanto...
Volto, tiro os frescos da carrinha e deixo o resto para mais logo, quando tiver ajuda.
Chego pela segunda vez no mesmo dia ao restaurante, por volta das sete. Já há muita gente a ajudar, estão a descascar mangas.
Joana pega na carrinha, descarrega tudo com a ajuda de mais três pessoas, Joana volta a estacionar a carrinha.
Vamos às mangas. Boas, boas, e tantas que deixamos uma caixa para a dona do restaurante, a que diz que não é dona, é funcionária - mulher do dono, é a mesma coisa.
Depois chegam mais dois ajudantes e aí dá-se o drama.
Joana, que até agora se estava a portar bem, sim, chegou atrasadíssima de manhã, mas cumpriu a tarefa sem azar de maior, impediu o esparguete para a bolonhesa de cozer demais, lavou a louça que se foi amontoando, Joana decide encher a garrafa de detergente que entretanto estava no fim. Joana devia ter perguntado, mas achou que sabia, que é a pior das confianças, Joana pega e põe detergente já diluído na garrafa.
Aquilo queima. Companheiro de lavagem também se queixa, mas como é homem, aguenta.
Joana por acaso é mulher e mariquinhas, além de que tem uma ferida na mão (para não falar dos arranhões nos pulsos e braços da visitinha ao Banco Alimentar), e não aguenta. Joana começa a suspeitar que algo se passa. Questiona a dona, ouve sermão: era detergente da máquina, cáustico e corrosivo, a própria dona só lhe mexe com luvas.
Ponto para a Joana.
Mal corrigido, mas ainda a ouvir da dona (porque aquilo é caríssimo, porque agora não se pode pôr de volta no garrafão porque a inteligente o diluiu, porque, porque, porque), Joana tenta passar despercebida e não fazer mais nada, a ver se sai dali viva.
E conseguiu? Era bom, não era?
Pois a Joana foi jantar de avental vestido para não se sujar com o molho da massa e foi mais uma infracção para o livro.
Acredito honestamente que ontem estive a isto de ser despedida. De um voluntariado, no less!
Felizmente a condução da carrinha está cada vez melhor, aperfeiçoada que foi logo pela manhã a 100km/h na A28, e não fosse ter transportado seis pessoas num banco de três, infracção nenhuma teria sido cometida.
E os sem-abrigo? Estavam chatos como tudo, reclamaram da massa, amuaram com o racionamento da aletria, não gostaram do batido de manga, chatearam-se connosco por causa dos sacos da roupa. Haja paciência!
Tudo para dizer isto. Ontem o novato do dia perguntou-me se não nos faz impressão. Distraída que eu estava com o separar dos pratos, não percebi. "O quê?", ainda perguntei.
"Isto... As pessoas.", disse ele.
Aí lembrei-me da minha primeira vez e tive que dizer que sim, faz muita impressão, a primeira vez é sempre muito forte.
Depois começas a vê-los como pessoas, deixam de ser a fome que trazem, a tristeza nos olhos, às vezes a sujidade nas mãos, e passam a ser pessoas. Têm nomes e histórias e às vezes são chatos e mesmo mal-agradecidos. Como as pessoas todas.
A carrinha não tem sexta, mas eu tenho.
Volto, claro.

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